CONVERSA DE VELHO COM CRIANÇA
Quando o bonde ia pôr-se em movimento, o senhor idoso subiu, com a criança. Não havia lugar para os dois, e mesmo a menina somente pôde acomodar-se em meu banco porque uma senhora magra aí consumia pouco espaço.
A garota sentou-se a meu lado, o velho dependurou-se no estribo. O bonde seguiu. Notei que a menina levava um pacote de balas, e que com o velho iam vários embrulhos; entre eles, um guarda chuva. Não sabendo que fazer dos acessórios, e desistindo de ordená-los, o velho resignou-se ao mínimo de desconforto na viagem. Tinha os movimentos tolhidos, e o condutor aproximava-se, a mão tilintando níqueis.
Era de prever a dificuldade da operação a que se via obrigado: libertar dois dedos da mão direita, enfiá-los no bolso do colete, e extrair desse secreto lugar as moedas devidas. Na linha em que viajávamos, a posição do pingente oferece perigo. O bonde segue paralelo e rente ao passeio, e os postes, no momento preciso em que passa o bonde, deslocam-se imperceptivelmente para mais perto dele.
O deslocamento de alguns milímetros é, às vezes, mortal. Todos os que viajam de pé sabem disso. Os que morrem têm tempo de verificar o fenômeno, porém não de evitá-lo. Imaginei que o velho se arriscava a morrer dessa maneira, e, na desordem de seus movimentos, havia base para a suposição. A vida, entretanto, vigiava-o com interesse, o mais que aconteceu foi a moeda cair na rua, depois de penosamente sacada do bolso.
Era de dez tostões, havia troco. Como a linha, pouco adiante, deixasse de ser duplo, o bonde tinha de parar, à espera de outro que vinha. O condutor aproveitou o momento para pesquisar a pratinha entre os trilhos. Voltou instantes depois, sem ela.
- Não precisa; assim o prejuízo seria maior, explicou ao velho, que se dispunha, desta vez com facilidade, mas sem prazer, a tirar outra moeda. O senhor não paga nada. O velho agradeceu vagamente: sem dúvida, não precisava disso. A certeza de que não pagaria duas vezes e perderia apenas os níqueis do troco restituiu-lhe a serenidade e a compostura próprias dos caracteres firmes. Cabia-lhe não recusar nem aceitar: atitude ambígua, vazada naquele agradecimento impreciso, meio cortês, meio seco.
O bonde seguiu. Já então o velho estabelecera um modus vivendi com o veículo. Colocou o guarda-chuva no ferro do estribo, onde ele ficou balouçando de leve; dispôs os embrulhos sobre o braço esquerdo, e arrimou este junto ao peito; quanto à mão direita, assumiu automaticamente sua função preponderante : empunhou, com força, a trave do estribo e ficou responsável pela vida e segurança do homem.
O homem tinha 60, 70 anos. No rosto vermelho, sulcado de rugas, o bigode branco era ralo e não parecia objeto de cuidados especiais. Os olhos eram a parte realmente sofredora do rosto, e neles se concentrava toda a expressão da fisionomia. As rugas entrecruzavam-se sabiamente em redor das pálpebras cansadas, e os olhos tristes, de uma tristeza particular e sem comunicação com o conjunto humano a que devia pertencer, abriam-se na paisagem de ruínas. São comuns as criaturas em que um só pequenino ponto parece existir realmente; as outras partes mergulham na sombra, nem são percebidas.
No corpo de mais de meio século, as vestes eram modestas e denunciavam o pequeno proprietário de subúrbio (talvez antigo funcionário público?). A casimira de cor neutra era talhada com fartura no paletó, com exiguidade nas calças. Gravata preta, de laço mais desajeitado que displicente. Um relógio – de ouro, para dar imagem do tempo – devia bater dentro do colete, de onde escorria uma gôndola grossa.
O chapéu também era preto, de um preto que a sorrateira infiltração do pó tornava mais doce, e falava dessas casas onde todas as pessoas são velhas e se resignam à poeira, não a expulsando mais dos móveis nem dos chapéus, porque não vale a pena.
- Ferreira, você quer uma bala? Só então voltei a reparar na menina, que se sentara no meu banco e era miudinha, morena. Sentara-se na ponta do banco. O corpo do velho e seus embrulhos protegiam-na, a ponto de anulá-la. Mas a presença infantil ressurgia na voz, que era lépida e desejosa.
- Quero, sim. Me dê uma aí. -Eu também quero uma. Abre pra mim, Ferreira. O velho desprendeu a mão do estribo – sua vida ficou balouçando, como o guarda-chuva - , e, com o equilíbrio assegurado, desatou o embrulho de balas. A menina serviu-se primeiro.
O oferecimento fora um ardil para que Ferreira consentisse na abertura do pacote. É possível que Ferreira houvesse compreendido, mas o certo é que chupou sua bala com uma simplicidade que excluía a menor suspeita de reflexão. Avô e neta? Ou simplesmente, amigo e amiga?
O fato é que eram íntimos. Enquanto chupava a bala, não carecia a menina de outra diversão, e deixou de pensar em Ferreira. As mãozinhas seguravam com firmeza o embrulho precioso. O bonde, para uma criança daquele tamanho, devia ser alguma coisa de monstruoso, incompreensível. Ou era apenas eu que não compreendia a maneira como a criança tomava conhecimento do bonde?
Surpreendi-me a interrogá-la (e Deus sabe como me é difícil dirigir a palavra a um desconhecido, de qualquer idade, em qualquer situação) :
- Me diga uma coisa, como é que você se chama?
- Maria de Lurdes Guimarães Almeida Xavier A vivacidade indicava um largo treino.
Havia também o gosto do nome comprido como trem de ferro, tão mais interessante do que Maria somente, ou Lurdinha. Disse e sorriu para mim, com a bala dançando na língua.
- O nome é maior do que a pessoa, observei, bestamente. Não fez caso.
- É. O nome é grande, repetiu o velho, com essa condescendência mole com que se gratifica o vizinho do bonde, e não envolve compromisso de relações.
- Você tem quatro anos, aposto.
- Não, tenho cinco.
- E está no jardim-de-infância.
- Jardim de quê? Ah! (muxoxo). Estou não. Evidentemente, eu não saberia interessá-la. Ondulou sobre nós, por instantes, um leve constrangimento. Quando encontrarás, Carlos, a chave de outra criatura?
Ferreira continuava no estribo, sem ligar. A vida dele estava salva, os postes haviam recuado um metro. O silêncio deu tempo a Maria de Lurdes para dizer esta frase estanha:
- Ferreira, você é o saci-pererê. Ao que Ferreira respondeu, com tranquilidade:
- É você. Você é que é o saci. Por que o saci aparecera de súbito entre os dois? Certamente ele frequentava a conversa de ambos. A imagem invocada fez rir Maria de Lurdes, que apontou o dedo para Ferreira e insistiu:
- É você! É você! Ferreira sorriu o bastante para significar a Maria de Lurdes que não se importava em ser saci-pererê, mas também não queria ver sua identidade conhecida do grosso público. E depois, mais baixo, em tom confidencial:
- Ferreira perdeu o dinheiro do bonde. Você viu?
- Não. Onde você perdeu?
- Caiu da mão. Foi ali atrás, na curva. Era uma pratinha amarela.
- Achou?
- Não, terminou Ferreira distraidamente. (Estava pensando em outra coisa.) Os dois calaram-se. Seriam amigos? Os sobrenomes não coincidiam. Eu preferia que fossem amigos, exclusivamente, e que nenhum vínculo de sangue forçasse aquela intimidade abandonada. A ausência de respeito era argumento contra o parentesco e a favor da amizade. Mas os pais de hoje prescindem do respeito em benefício da camaradagem. Os avós devem ter-se modernizado também. Seria Ferreira um avô moderno?
De qualquer modo, a camaradagem consentida é menos estimável que a espontânea, de temperamentos que se ajustam. E imaginei Ferreira vizinho de Maria de Lurdes, afeiçoando-se à pequena, subornando-lhe o coração à custa de carinha diários, roubando-a, enfim, para si. Amiga Maria de Lurdes, amigo Ferreira; os cinquenta e cinco anos de diferença faziam o entendimento mais perfeito, já que pessoas da mesma idade dificilmente se entendem.
- Ferreira... Chega aqui. Ferreira inclinou-se, pôs a velha orelha, coberta de pelos, junto à boca lambuzada. A menina, vermelha, baixou os olhos com infinito pudor. Num sussurro, o segredo grave passou de boca a orelha, introduziu-se em Ferreira, ocupou-o inteiro. Ele disse apenas:
“Ah...” Depois, retirou do estribo o guarda-chuva e alcançou à altura do cordão. O bonde parou. Ferreira, Maria de Lurdes, guarda-chuva e embrulhos desceram pausadamente, atravessaram a rua, entraram pela primeira porta aberta... Meu pai dizia que os amigos são para as ocasiões.
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